A dor e a delícia de ser livre, solto e louco

Lion Fish

Por Prem Amrita

Um corpo nu é só um corpo nu. Com sua beleza e imperfeições. Na verdade, nossa única casa neste mundo. Eu diria até, nosso templo, que muitas vezes esquecemos de cuidar com o carinho e o afeto de merecimento. Mas nossas taras, individuais e coletivas, transformam o corpo em um objeto de desejo, quase nunca satisfeito.

Mesmo que todos nós busquemos o prazer, esta é uma palavra que evoca sentimentos conflitantes. Por um lado está associada com o que é “bom”. Mas a maioria das pessoas acharia desperdício uma vida devotada ao prazer. Temos medo que o prazer nos leve a caminhos perigosos, onde poderíamos esquecer os deveres e obrigações, deixando nossos espíritos se corromperem pelo prazer descontrolado. Na real, em nossa cultura, todos temem o prazer e condenam o corpo. Como dizia John Lennon, “Vivemos num mundo onde temos que nos esconder para fazer amor enquanto a violência é praticada à luz do dia”.

Mas o interessante é que nem sempre foi assim, e podemos mudar. Pesquisando sobre o assunto me deparei com uma análise estatística realizada pelo neuropsicólogo James W. Prescott, do National Institute of Child Health and Human Development, com 400 sociedades pré-industriais.

No trabalho de 1975, intitulado “O Prazer Corporal e as Origens da Violência”, ele aponta que aquelas culturas que dão muito afeto físico a seus filhos e não reprimem a atividade sexual de seus adolescentes são pouco inclinadas à violência, à escravidão, à religião organizada. Já nas culturas em que o castigo físico às crianças e a repressão sexual aos adolescentes é constante, a tendência é a convivência com maiores taxas de homicídios, torturas, cultivo da inferioridade da mulher, além da crença em seres sobrenaturais que interviriam na vida diária.

Prescott afirma que a privação do contato corporal, das carícias e do movimento constituem as causas básicas de boa parte dos transtornos emocionais que incluem comportamento autista e depressivo, hiperatividade, perversões sexuais, busca de riqueza e poder, abuso de drogas, violência e agressão.

Em nosso mundo, o poder que quer submeter o outro à violência se sobrepõem. A luta pela sobrevivência torna a busca natural pelo prazer irrelevante. Suportamos a dor e a violência. Tomamos como normal o que não o é. Adotamos um comportamento autodestrutivo.

Tudo isso pra quê?

O médico norte-americano Alexander Lowen faz uma analogia interessante. Segundo ele, a pessoa que mora em um apartamento de uma cidade moderna aquecido no inverno e refrigerado no verão, ou que trabalha em um escritório em condições semelhantes, é como um animal na jaula do zoológico ou um peixe no aquário. Sua sobrevivência está assegurada e seu conforto provido, mas a excitação e o prazer em espaços abertos, os estímulos das mudanças de estação e a liberdade de áreas ilimitadas lhe estão negadas. “Não passa de um pobre peixe que trocou a liberdade e os perigos do oceano ou do rio pela segurança do aquário”, diz ele.

E assim vamos morrendo um pouco a cada dia. Abafamos nossos corpos com comida, álcool, drogas, remédios… E assim vamos levando. Quem sabe curar as feridas da infância e da adolescência seja o início para uma maior consciência do nosso corpo, de uma vida mais prazerosa? Só que é mais fácil condenar o outro por ser livre do que enxergar a própria escravidão. Então, com palavras, olhares, julgamentos e desprezo colocamos na fogueira os que buscam se libertar de suas correntes internas e correr nua ou nu.

Em julho de 1988, em plena ditadura do general Pinochet, 300 intelectuais e artistas participaram do “Chile Cria”, um encontro internacional de arte, ciência e cultura pela democracia no País. Em nome de todos os convidados, o escritor uruguaio Eduardo Galeano leu o discurso de inauguração reproduzido no livro “Nós dizemos Não”. Serve de inspiração:

“Dizemos não ao elogio do dinheiro e da morte. Dizemos não a um sistema que põe preço nas coisas e nas pessoas, onde quem mais tem é quem mais vale; (…) nós dizemos não a um sistema que nega comida e nega amor, que condena muitos à fome de comida e muitos mais à fome de abraços. Dizemos não à mentira. Essa cultura mentirosa que, grotescamente, especula com o amor humano para arrancar-lhe mais-valia. (…) Premiam a nossa obediência, castigam a nossa inteligência e desalentam a nossa energia criadora. Temos direito ao eco, não à voz, e os que mandam elogiam nosso talento de papagaios. Nós dizemos não: nós nos negamos a aceitar esta mediocridade como destino. Nós dizemos não ao medo. Não ao medo de dizer, ao medo de fazer, ao medo de ser.”

E dizendo não ao triste encanto do desencanto, dizemos sim ao que realmente importa: à vida, com todas as consequências de ter a coragem de seguir o que faz meu coração vibrar”. Como declarou Charles Chaplin em “O Último Discurso”, que a alma do homem ganhe asas e afinal comece a voar. E que todos nós “ergamos os olhos”!

2 comentários sobre “A dor e a delícia de ser livre, solto e louco

  1. Sim, nos prendemos de vários prazeres. O conceito de disciplina e ordem ainda impera na nossa convivência nas cidades e `sair da linha` é condenável, mesmo que todos e todas saiam de vez em quando.
    Um `prazer do/para o corpo`que coloco aqui como complemento é o sono, o ócio, em detrimento ao emprego – resguardemos o trabalho. Uma boa dormida em pleno horário comercial eu acho um ato bem libertador também! Afinal a noçao de tempo que reproduzimos também aprisiona o corpo.

  2. O texto é interessante, mas peca em uma colocação, o autismo não é um transtorno emocional, um autista não se torna autista ao longo da vida, como uma pessoa com depressão, ou pânico, ou ansiedade; um autista nasce autista.

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