Por Prem Milan
Pós carnaval. Metade de fevereiro. Aparecem-me dois rapazes. Um de 22, outro de 24 anos querendo trabalho. Ambos com uma cara assim meio estranha. Situação tipicamente desconfiável… Fiz algumas perguntas, não conhecia-os. Toda a situação “cheirava mal”. Mas não consegui pegar nada de errado, e teve um lado meu que se compadeceu. Disse “vocês vêm aqui amanhã cedo e dou trabalho à vocês”. Daí botei eles num lugar na Comunidade onde não teriam acesso às casas, às maquinas e tratei de conseguir informações sobre as caras novas.
Como aqui no Cantagalo todo mundo conhece todo mundo, fui fazer minhas pesquisas. Perguntei para um vizinho aqui, outro ali. Todo mundo era unânime: “são ladrões, vieram lá da restinga”. Eu fui mais, pois queria saber um ato ruim que teriam feito. Nimguém sabia! Só se sabia que eles estavam pedindo comida, pois estavam com fome. E eu com os dois pés atrás.
Fui na vizinha deles, que eu conhecia. Perguntei como eram. Disseram-me “estão há dois meses aqui e vejo eles trabalhando no sol forte. E trabalham! Já vi eles pedindo comida e tal, mas nunca vi e eles roubando. Eu acho que se roubassem não estariam pedindo comida…”
Eu concordei. Continuei dando trabalho a eles. Adiantei uma grana. A primeira coisa que fizeram foi comprar comida. Moravam com a irmã e o cunhado que tem 3 filhos. A irmã pegou-os para viver junto, pois o pai era muito louco.
Realmente eles tem uma vida complicada. O cunhado morava num sítio onde tem cavalos. Mas só tinha trabalho para um e os outros dois estavam ali e acabavam por trabalhar de graça. Não sei direito…
Começaram a trabalhar comigo. Aí uma segunda de manhã não vieram. Faziam 4 dias que estavam trabalhando comigo e nāo vieram. Meu desconfiômetro aumentou! Mas descobri que o cunhado tinha bebido e quando voltou chutou de casa a mulher com as 3 crianças e os dois rapazes. No meio da noite, meio que invadiram uma casa que estava fechada e se instalaram ali. No dia seguinte, vieram pedir ajuda para mim.
Aí o consenso era geral no Cantagalo. De todas as pessoas que eu consultei; todas afirmavam que era uma roubada. Que tinham crianças no meio e ainda por cima tinham que sair da casa . Eu mesmo fiquei contaminado com essa idéia.
Outros trabalhadores não queriam ajudá-los; os comerciantes também não queriam. E um lado dentro de mim que de uma certa forma não queria ver. Aí vi aquela mulher com os dois rapazes e aquelas 3 crianças saindo do sítio. E eu olhei e disse: cara qual o futuro dessa gente? Hoje à noite eles não vão ter lugar para dormir, e essas 3 crianças sofrendo. Aqueles dois meninos, já quase homens, muito putos… Qual é a saída deles? Roubar! Qual a saída dessa mulher? Se prostituir, se insensibilizar. Qual o futuro daquelas 3 crianças? Três desesperados desse Brasil…
Pensei, “qual o mal em ajudar aquela gente”? Eu posso ir ali ajudar a alugar uma casa para eles. Perder 3 meses de aluguel. 1.200 ou 1400 reais, para mim não significa muita coisa. É uma televisão. Cinco dias de uma casa na praia no Rosa. Porra, e pode ser que fazendo isso, estarei fazendo uma grande diferença para eles. Esses 2 meninos não vão virar marginal, essa mulher não vai virar uma prostituta e esses 3 meninos talvez tenham o mínimo de futuro.
O que custa para mim me incomodar. O que custa me dar esse trabalho? Pode ser que eles venham até assaltar meu sítio. O mundo é tão ingrato com eles que dificilmente eles vão conseguir ter gratidão. Eu to vendo o desespero que estão passando. Como querer que essas pessoas não mintam? Se eles falarem a verdade ninguém vai os ajudar. Eles tem que inventar uma história melodramática maior do que é. Claro, eles invadiram aquela casa e o rapaz disse que alugaram. Perguntei por quanto. 350, disse. Falei que estava caro. Ao que me retrucou “melhor do que morar debaixo da ponte”. Um raciocínio interessante.
Agora eu gostaria de saber de ti: se tivese com 3 filhos de 3, 5 ou 7 anos na rua, vivendo dentro de uma casa improvisada e com frio. O que tu farias? Invadia a casa ou não? Se teus filhos estivessem passando fome, o que tu ias fazer? Ias roubar ou não?
Nós, pequenos burgueses, cheio de comodidades julgamos facilmente os outros. Graças à deus eu fui atras para checar as informações. Talvez vá rolar uma casa pra eles, ainda não sei. Mas estou fazendo minha parte. E se eu me incomodar? Me incomodei… mas quero deixar de ser cruel e empedernido, porque intelectualmente, somos muito legais, mas é só intelectualmente.
Aí me lembrei do Charles Chaplin. “Empedernidos e cruéis”. E eu comentei com as pessoas ao redor, os vizinhos… Uma mulher, comerciante daqui do bairro, me disse: quem tem pena, vai ser depenado! A que ponto chegamos? Puta crueldade! Nós da classe média isso não chega a nós. Nós temos o Estado, a polícia, os comerciantes ricos dos bairros, que expurgam essa gente lá para fora, para que nós não vejamos o tamanho do dano que nós causamos com o nosso egoísmo e a nossa ganância, com nossos carros novos, apartamentos, e coberturas. Você me pede qual a solução? Eu não sei, realmente, não sei. Mas meu coração vai sentir e vai fazer alguma coisa que esteja ao meu alcance.
Pelo menos estou criando a possibilidade de mudar este destino trágico. É o que está ao meu alcance. Todos os outros funcionários são categoricamente contra, mas eu os empreguei. Vou dar uma chance a eles e se eu tiver que perder uma máquina, alguma coisa, o ser humano vale mais do que isso.
“Não sois máquina, homens é que sois”. Sei perfeitamente que não vai mudar a estrutura disso tudo, mas não vou ficar cético, insensível. Não quero perder a minha qualidade humana como dizia o grande Carlitos, no último discurso.
“Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio … negros … brancos.
Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades.”
Prefiro ser ingênuo do que insensível.
“Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergues os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos.”
Para quem quiser ver o último discurso na íntegra: http://pensador.uol.com.br/o_ultimo_discurso_de_charles_chaplin/